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Aparição

Romance de Vergílio Ferreira publicado em 1959. A presença de um narrador autodiegético em Aparição é uma característica determinante. O sujeito enunciador revela-se a si mesmo à medida que se vai apropriando linguisticamente do fluxo das vivências que decorrem no mundo, como é evidente nos textos de abertura e fechamento do romance, que, situados num tempo pós-trágico de reflexão, funcionam como parênteses que sugerem uma libertação da visão do narrador em face da ação contida entre eles: «Sei, não talvez como quem conquistou mas como quem se despoja: a minha verdade é o que me sobeja de tudo.» A ação inicia-se com a chegada a Évora de um novo professor, Alberto Soares, no início de mais um ano letivo. Alberto, o narrador, cedo se relaciona com o Doutor Moura, antigo colega do seu pai, e o seu círculo familiar, nomeadamente Ana, casada com Alfredo Cerqueira, Sofia, de quem se tornará explicador de Latim, e Cristina, a filha mais nova da família. Neste espaço familiar circulam também as figuras de Carolino, um dos seus alunos do Liceu, e o engenheiro Chico, um amigo da família, espécie de neorrealista militante. O espaço urbano de Évora tem como contraponto o espaço rural da montanha onde Alberto viveu a sua infância, e ao qual temos acesso através de analepses que nos dão conta do crescimento dessa personagem, designadamente a descoberta do seu próprio «eu» em face de um espelho, o primeiro contacto com o não-sentido da morte (a famosa «metáfora do cão») e a aquisição da consciência da «morte» de Deus. Assim, o seu passado evolutivo vai iluminando o seu desenvolvimento no presente da ação principal: a interação da sua verdade com aquela das outras personagens, oscilando entre os polos da aparição e da desaparição, da revelação e da dissimulação, da integração e da desintegração.

A ação principal estrutura-se em dicotomias combinadas em triângulos trágicos: Alberto, Sofia e Carolino; Alberto, Sofia e Ana; Ana, Sofia e Cristina, etc. Alberto é aquele que introduz o vírus da interrogação no seio da comunidade eborense: «Tinha uma missão a executar, uma extraordinária notícia a transmitir. Precisava urgentemente (...) de revolucionar o mundo. (...) Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver . Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da morte». Como professor caber-lhe-ia, além disso, trazer respostas. No entanto, ele cumpre apenas ambígua e incompletamente esse estatuto. As suas interrogações desintegram definitivamente Sofia (de quem será amante), que corporiza toda a negatividade potencial que as interrogações comportam («apenas o arranque e a inquietação»), e Carolino, que, destruído pela corrosividade das interrogações, perplexo diante do poder que percebe em si, acabará por assassinar Sofia, de quem também se tinha tornado amante. Ana, por sua vez, representa a integração e a dissimulação. Abaladas as certezas por Alberto e, depois, mais profundamente, pela morte de sua irmã Cristina, Ana parece quase ser atingida por uma revelação fulgurante. Contudo, a adoção de duas crianças parece remetê-la de novo a um estatuto conformado. Quando falamos de interrogações, falamos da problematização da vida em face da morte. Alberto não cessa de verbalizar o absurdo da mortalidade, tal como ela é expressa no «sacrifício» de Cristina, a criança loura que tocava Chopin divinamente, sugerindo através da música uma autonomia da realidade humana. Todavia, é exatamente através da morte de Cristina que se torna possível a exaltação integral da condição humana desde as suas raízes mortais - a sua aparição: «só há um problema para a vida, que é o de saber a minha condição e de restaurar a partir daí a plenitude de tudo (...). Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer».

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