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Questão Coimbrã

O primeiro sinal da renovação literária e ideológica foi dado na Questão Coimbrã, onde se defrontaram os defensores do statu quo literário e um grupo de jovens escritores estudantes em Coimbra, mais ou menos entusiasmados pelas leituras e correntes estrangeiras.

O motivo da "Questão" foi aparentemente trivial. O conjunto de acontecimentos que a rodearam pode resumir-se da seguinte forma:

-» Publicação, em 1862, do poema D. Jaime, de Tomás Ribeiro;

-» A Conversação preambular, escrita, em 11 de Julho de 1862, por António Feliciano de Castilho, para apadrinhar o poema D. Jaime, ultrapassa todos os limites, traçando um confronto entre essa obra e Os Lusíadas, considerando-a uma epopeia superior à epopeia camoniana.

-» Leitura a Castilho dos poemas, até então inéditos, de Antero e Teófilo, que os acolheu com hiperbólica ironia.

-» Escaramuças jornalísticas entre Pinheiro Chagas, crítico dos «coimbrões», e Germano Meireles, seu apologeta.

-» Em agosto de 1865, Antero de Quental publica Odes Modernas, influenciado por escritores e filósofos franceses, afirmando no prefácio que “A poesia é a voz da Revolução”.

-» Em 27 de setembro de 1865, Castilho (uma espécie de padrinho oficial de escritores mais novos, tais como Ernesto Biester, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas, à volta do qual se constelou um grupo de admiradores e protegidos ‑ «escola do elogio mútuo», chamar-lhe-á Antero ‑ em que o academismo e o formalismo anódino das produções literárias correspondiam à hipocrisia das relações humanas, e em que toda a audácia tendia a neutralizar-se), em carta ao editor António Maria Pereira que serve de posfácio ao Poema da Mocidade, ingénua biografia lírica em quatro cantos, típica do saudosismo ultrarromântico, escrita por Pinheiro Chagas, aproveita a oportunidade para fazer o elogio deste escritor, recomendando Pinheiro Chagas ao rei D. Pedro V para a cadeira, então vaga, de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, e censurar um grupo de jovens de Coimbra, acusando-os de exibicionismo livresco, de obscuridade propositada e de tratarem temas que nada tinham a ver com a poesia. Os escritores mencionados eram Teófilo Braga, autor dos poemas Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras (futuro candidato a essa cadeira de Literatura); Antero de Quental, que publicara Odes Modernas; e Vieira de Castro, um jovem e verboso deputado.

-» Antero responde, em novembro de 1865, com um folheto intitulado Bom Senso e Bom Gosto (as duas virtudes que Castilho negara aos dois academistas). Nele defendia a independência dos jovens escritores; apontava a gravidade da missão dos poetas na época de grandes transformações em curso, a necessidade de eles serem os arautos do pensamento revolucionário e os representantes do «Ideal»: ridicularizava a futilidade, a insignificância e o provincianismo da poesia de Castilho. Estava despoletada a Questão Coimbrão e estavam também lançadas as sementes do Realismo em Portugal.

Os sequazes de Castilho replicaram de imediato e os folhetos começaram a chover de ambos os lados. Quental arremeteu com novo opúsculos nesse mesmo ano, sob o título A dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, enquanto Teófilo replicou com Teocracias Literárias (1866). Castilho não reagiu publicamente, mas teve como defensores figuras ilustres. Um deles foi Ramalho Ortigão, que mais tarde se haveria de integrar no grupo de Coimbra, mas que nesta altura saiu à liça como paladino de Castilho em Literatura de Hoje (1866), repreendendo Antero com ásperos adjetivos pelo seu desrespeito, o que provocou um duelo entre ambos. Note-se, porém, que nesse folheto Ramalho marcou uma posição de independência, criticando também a fuga de Castilho às lutas das ideias. Outro combatente das hostes de Castilho foi Camilo, que, em Verdades Irritadas e Irritantes (1866), com o seu temível sarcasmo polémico, veio atacar a nova geração.

De notar que a Questão Coimbrã se alimentou de incompatibilidades literárias, que se foram juntando as sociais, políticas e filosóficas e, por último, as pessoais. Por exemplo, Antero e Teófilo não deixaram de causar estupefação com a brutalidade das alusões à idade e à cegueira de Castilho.

2.1. O significado da Questão

A Questão, embora aparentemente literária, denunciava incompatibilidades mais profundas. De facto, os jovens universitários de 1865 reagiram contra a falsidade que representavam muitos outros aspetos da vida portuguesa, produto da adaptação das formas alienígenas do Liberalismo à velha estrutura tradicional do País. A revolta da Geração de 70 eclodiu num movimento político, filosófico e literário, cuja amplitude ultrapassou talvez a do próprio Romantismo.

Este grupo que se sublevou contra Castilho era o mesmo que, acrescido de personalidades com tendências paralelas, havia de tratar, em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino, de colocar Portugal a par da atualidade europeia, ligando-o "com o movimento moderno", estudando "as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa".

Da ânsia de renovação cultural dos universitários dessa época dá Eça de Queirós uma boa ideia, ao relembrar a Coimbra do seu tempo: "Pelos caminhos de ferro que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários. Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos Reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como um universo; e Pöe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros!

Naquela geração nervosa, sensível e pálida como a de Musset (por ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas maravilhas caíam à maneira de achas numa fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumarada!"

De toda esta problemática, fácil se torna concluir que esta geração surgida à vida pública na famosa "Questão Coimbrã" avulta como uma das mais brilhantes constelações que a cultura portuguesa produziu em qualquer época.


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