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José Régio - As Encruzilhadas de Deus

QUEM FOI JOSÉ RÉGIO:

José Régio nasceu em Vila do Conde, em 1901. Poeta, dramaturgo, romancista, professor, é talvez a figura literária mais completa do século XX. A sua vida, para além das suas atividades docentes, foi a sua obra.

Fez os seus estudos secundários na Póvoa do Varzim e no Porto, andou na Faculdade de Letras de Coimbra, na secção de Filologia Românica. Em 1925 publicou na Lusa Atenas o seu primeiro livro de versos, "Poemas de Deus e do Diabo".

Embora a crítica lhe fosse, em geral, indiferente não desistiu das suas atividades literárias. Em 1927, funda com uns amigos a revista e o movimento literário da "Presença".

Em 1928 fixa-se em Portalegre como professor no liceu, funções em que permaneceu durante 30 anos.

Faleceu em Vila do Conde no ano de 1969.

 

AS ENCRUZILHADAS DE DEUS:

Meu Menino, Ino, Ino

1

Dos versos que exprimem,

Estou cansado!

Das palavras que explicam,

Estou cansado!

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,

Ai, encosta-me ao peito...!

Mais não quero que ser embalado.

2

O menino está doente...

-- Diz a mãe.

Qui-é qui-é

Que o menino tem?

Ai...!

Diz o pai.

A criada velha chora pelos cantos

E reza a todos os santos...

Afirma o senhor doutor

Que amanhã que está melhor.

O pai suspira:

-- Quem sabe lá?!

E o menino diz:

-- Papá...!

A mãe chora:

-- Quem já me dera amanhã!...

E o menino diz:

-- Mamã...!

E, com a febre, rezinga,

E choraminga,

Olhando a lua amarela

Como uma vela:

-- Quero aquela péla...!

Mas o Pai do Céu sorri:

-- Vem cá vê-la!

É para ti.

3

-- Acabaste?

-- Meu amor, acabei.

-- Apagaste a candeia? apagaste?

-- Meu amor, apaguei.

- E fechaste o postigo? e fechaste?

- Meu amor..., sim, fechei.

-- Que rumor é aquele? não sentes?

-- Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes.

-- São gentes? Quem são?

-- São colegas, amigos, parentes...

-- Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!

 

Versos da Bela Adormecida

Lá longe, muito longe, ai, muito longe!, ao fundo

De areias e gelos do cabo do mundo,

Depois de ralos, aflições, suores, dragões, ciladas, perigos,

E bosques tenebrosos, antigos, antigos.

Sonhei que ela me espera, adormecida

Desde o começo da vida,

Nua, deitada sobre as tranças de oiro,

Guardada para mim como um tesoiro.

Sonhei que um nimbo argênteo a veste,

Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste,

E que sobre ela paira o silêncio profundo

Dos gelos e areias do cabo do mundo...

No seu lábio, um sorriso ainda transido

Ficou, como na boca das estátuas, esculpido,

Esperando, talvez, para raiar,

Que ela suba as pestanas, devagar...

Vi uma vez, em sonhos vi, que aquelas pálpebras se erguiam,

Sim, devagar..., sim, devagar..., e que os seus lábios me diziam,

Estendidos para mim:

-- «Chegaste?, chegaste enfim?!»

E eu soluçava: -- «Sim, sou eu...!

«Mas tu..., és tu, bem tu, Porta do Céu?!

«És tu, ou não és mais que mais uma miragem

«Das tantas que encontrei pela viagem?

«Ai, que de vezes já supus que te possuía

«Em uma imagem que afinal era vazia, era vazia!

«E que longe, afinal, te não venho encontrar,

«Que passei ermos, passei montes, passei pegos, passei mar...»

Foi isto em sonhos. Acordado, eu perguntava: -- «Que farei?

«Aonde... a que longe irei,

«Para que vos atinja, ó silêncios sem fundo

«De areias e gelos do cabo do mundo?

«Anjos, demónios, serafins de asas de lanças e cabelos

«De chamas e serpentes aos novelos,

«Génios que em sonhos me guiais!:

«Já me não bastam sonhos! Quero mais.

«Quero, através seja de que desertos,

«Chegar a ver, com olhos bem despertos,

«O resplendor que sei que a veste,

«Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste...»

Assim falei. Ninguém, porém, me mostrou ter ouvido.

Meu grito, além, se extinguiu já, perdido...

E eu morro deste ardor, que nada acalma,

Com que aspiro debalde à minha própria alma.


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